Água, mudanças climáticas e direitos humanos.
A produção de injustiça ambiental (hídrica e climática) para beneficiar as indústrias hidrointensivas e poluentes do Complexo Industrial do Pecém, no Ceará.

Este pequeno texto pretende fazer uma abordagem sucinta no que se refere à interface entre a política de desenvolvimento (em especial a energética, com foco na matriz fóssil vinculada às termelétricas, sem esquecer outras plantas industriais que utilizam energias não renováveis, como usinas siderúrgicas e refinarias) e a política de recursos hídricos, que é, em meu entendimento, a que mais produz injustiça ambiental, ou seja, violação dos direitos humanos[2] pela real política climática do estado brasileiro (nos três níveis da federação).
O que se pretende apresentar é o que acontece hoje no Estado do Ceará, que viveu, até o início deste ano, como de resto toda a região do semiárido nordestino, a sua pior seca em mais de 100 anos; desde 1910, que não se configurava uma estiagem tão severa como a atual[3]. Para se ter uma ideia da gravidade da situação, de acordo com os dados disponibilizados pelo Portal Hidrológico do Estado do Ceará, no dia 19 de janeiro de 2017, os 153 açudes monitorados pela Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos (COGERH) apresentavam um volume de apenas 1,188 bilhão m³, ou seja, pouco mais de 6% de sua capacidade total, que é de 18,64 bilhões m³[4].
Ocorre que o problema não está somente na ausência de chuvas, mas, numa equivocada, injusta e insustentável política de desenvolvimento que priorizou a atração de megaempreendimentos hidrointensivos - em especial os situados (e os previstos) no Complexo Industrial e Portuário do Pecém (CIPP), nos municípios de São Gonçalo do Amarante e Caucaia - acarretando um grande conflito pela distribuição, acesso e uso da água no Estado do Ceará.
Criado em 1995, no governo Tasso Jereissati, com um total de 13.337 hectares, o CIPP possui localização estratégica, pois fica a 50 km da capital do estado e compreende um terminal portuário e um retroporto, onde fica o distrito industrial[5]. A atração das indústrias vem se dando por meio de uma agressiva política fiscal, de benefícios tarifários e tributários[6], pela construção de uma vigorosa infraestrutura, em especial para a garantia da segurança hídrica, além de outras vantagens comparativas.
Dentre as indústrias ali instaladas está a Usina Termelétrica Energia Pecém, que está em operação desde 2012 e utiliza o carvão mineral em seu processo de geração de energia, tendo capacidade para fornecer energia para uma cidade de até 5 milhões de habitantes. Altamente poluente e grande emissora de CO2 - responsável por 11% da emissão de CO² do Ceará -, a termelétrica a carvão mineral veio a ser escolhida unicamente pelo seu baixo custo em relação às outras fontes de energia[7].
Além da gravidade no que concerne à utilização de uma fonte não renovável de energia, que causa impactos durante todo seu processo, desde a extração até a sua queima[8], deve-se questionar a quantidade de água utilizada em seu funcionamento. Para gerar 1 MWh, que é a energia necessária para abastecer mil residências, são necessários, segundo Costa[9], 30.000 (trinta mil) litros de água. Já Moreira et al.[10] calculam que esse consumo poderia ser mais do que o dobro, ou seja, entre 59.800 a 70.000 L/MWh.
Para suprir o abastecimento de água das indústrias situadas no CIPP, em 2014 foi inaugurado o quinto trecho do Eixão das Águas, obra de transposição de águas entre bacias, implementada pelo Governo do Estado do Ceará, pois antes a Termelétrica do Pecém recebia sua água apenas do Reservatório de Sítios Novos, que, no início do ano, se encontrava praticamente seco, com apenas 0,08% de sua capacidade.
Como não bastasse todo esse aporte de investimentos públicos para viabilizar a atração dessas indústrias que são, a um só tempo, hidrointensivas e grandes emissoras de GEE, o Estado, no caso das térmicas, ainda as “presenteia” com um abatimento de 50% em sua conta de consumo da água, conforme ficou estabelecido pela Lei 14.920/11; um verdadeiro escândalo diante do quadro de crise hídrica da região semiárida.
Acresce ainda que existem mais duas térmicas e duas siderúrgicas instaladas no CIPP. Até o início do período das chuvas, vários municípios do estado viviam uma situação de colapso (ou quase) em virtude do racionamento de água[11]. No entanto, ao se somar a outorga concedida a essa indústria termelétrica, que é de 800 litros de água por segundo, ao que é garantido a uma siderúrgica de grande porte (a Companhia Siderúrgica do Pecém - CSP), que detém a outorga de 1500 L/S, tem se que a utilização de água por parte dessas duas plantas industriais corresponde ao consumo de 1 milhão de fortalezenses, ou seja, 38% da população da capital do estado (considerando-se que o consumo humano individual em Fortaleza está em torno de 99,5 litros por dia ou 0,0015 L/S).
São dados muito graves e que sinalizam a existência de injustiça hídrica, porque combinam um uso abusivo da água relativamente às necessidades das populações humanas, uma extração da mais-valia social para manter empreendimentos por meio de subsídios e benefícios para atividades que ainda contribuem com o aquecimento global e as mudanças climáticas.
Abra-se aqui parêntesis para aduzir que a população do distrito e das comunidades situadas no perímetro do CIPP ainda sofrem o problema do “pó de carvão” que, transportado pelas esteiras que saem do porto para as duas grandes indústrias (termelétrica e siderúrgica) é derramado sobre suas casas e quintais, já lhes causando problemas graves de saúde[12], o que levou à suspensão da licença ambiental do equipamento[13]. Evidentemente, que essa infeliz e injusta situação se repete em outras localidades do Brasil situadas no entorno dessas plantas industriais poluentes[14].
Volvendo à questão da água, importante aduzir que, hoje, a crise hídrica não se cinge ao Nordeste, que, assolado periodicamente por estiagens, vive, repita-se, sua seca mais severa em mais de um século; São Paulo passou por essa situação há poucos anos e hoje o Distrito Federal já vive seu primeiro racionamento dágua[15], confirmando o que já havia sido alertado pelo 5o. Relatório do IPCC[16].
Fundamental para os ecossocialistas e os que militamos nos movimentos socioambientalistas e de direitos humanos denunciar o apoio, em especial, os incentivos fiscais e tarifários a esses megaempreendimentos – que são, a um só tempo, hidrointensivos e grandes emissores de CO2. Primeiro, porque foi esse segmento (da geração de energia), por meio da contribuição das termoelétricas, o que mais cresceu, em termos de emissões de Co2eq. (de 16% para 37%, entre 2005 e 2012), conforme a 2a. Edição das Estimativas Anuais de Emissão de Gases de Efeito Estufa no Brasil[17] - e tais incentivos contrariam não só a Lei 12.187/09, que instituiu a Política Nacional de Mudanças Climáticas, como o próprio Acordo de Paris para o clima, ratificado pelo governo brasileiro no ano passado, já que este teria extrema dificuldade de atender os compromissos de redução ali assumidos[18].
O segundo aspecto está em que tal política acaba por gerar “injustiça hídrica” - conceito decorrente de “injustiça ambiental”, que significa a má distribuição da água, sua negação ou entrave ao acesso a esse bem e o favorecimento de grupos econômicos em detrimento das populações humanas -, uma vez que, nesse conflito distributivo, são as populações mais pobres (indígenas, camponeses, moradores das periferias urbanas) que acabam sofrendo mais, posto que lhes é negado o direito fundamental à água.
Para Machado, “o acesso individual à água merece ser entendido como um direito humano universal, significando que qualquer pessoa, em qualquer lugar do planeta, pode captar, usar ou apropriar-se da água para o fim específico de sobreviver, isto é, de não morrer pela falta d’água, e, ao mesmo tempo, fruir do direito à vida e do equilíbrio ecológico”[19].
Aqui, em minha compreensão, talvez possa ser encontrado um dos aspectos mais dramáticos de violação dos direitos humanos pela real (e não a nominal) política climática e de desenvolvimento do Estado brasileiro. Aqui, portanto, se encontra uma das trincheiras mais importantes da luta ecossocialista.

João Alfredo é advogado, professor de Direito Ambiental, doutorando em meio ambiente e desenvolvimento, militante da Comuna, ex-deputado federal e ex-vereador de Fortaleza pelo PSOL
[2] Acserald et al conceituam injustiça ambiental como “o mecanismo pelo qual sociedades desiguais, do ponto de vista econômico e social, destinam a maior carga dos danos ambientais do desenvolvimento às populações de baixa renda, aos grupos raciais discriminados, aos povos étnicos tradicionais, aos bairros operários, às populações marginalizadas e vulneráveis” (O que é justiça ambiental. Rio de Janeiro: Garamond, 2009, p. 4.).
[3] http://msne.funceme.br/map/mapa-monitor/analise
[4] http://www.hidro.ce.gov.br/acude/nivel-diario
[5] PORTAL PECÉM. Disponível em: http://portalpecem.com.br/
[6] Como exemplo, temos a Lei 14.920/11, que autoriza a Companhia de Gestão dos Recurso Hídricos – COGERH, a conceder às empresas Porto do Pecém Geração de Energia S/A e MPX Pecém II Geração de Energia, 50% (cinquenta por cento) de desconto sobre a valor da taifa prevista em lei; a Lei 14.862/2011, que concede redução de ICMS ao carvão e a Lei 16.024/2016: dispõe sobre a base de cálculo do ICMS nas operações internas relativas a gás natural destinado a usina termelétrica produtora de energia elétrica no território cearense.
[7] Importante aduzir que o licenciamento ambiental dessa planta industrial sofreu um questionamento judicial, por meio de uma Ação Civil Pública proposta pela Defensoria Pública do Estado, que logou êxito no primeiro grau (município de São Gonçalo do Amarante), já que foi concedida liminar suspendendo a licença do empreendimento: liminar essa que foi posteriormente cassada pelo Tribunal de Justiça do Ceará.
[8] A utilização de fontes não renováveis de energia (petróleo, gás natural e carvão mineral), iniciada no século XVIII, e a intensificação do desmatamento vêm acelerando este processo de 272 PPM (partes por milhão) de dióxido de carbono para assustadores mais de 400 PPM.
[9] COSTA, Alexandre. O Quinze 2.0 exige resposta: Água para Quem? Disponível em: http://oquevocefariasesoubesse.blogspot.com.br/2015/01/o-quinze-20-exige-resposta-agua-para.html
[10] MOREIRA, João M.L et al. Sustainability detorioration of electricity generation in Brazil. In Energy Polcy 87. 2015. p. 334-346.
[11] http://diariodonordeste.verdesmares.com.br/cadernos/regional/77-7-dos-municipios-do-ceara-sao-atendidos-por-carro-pipa-1.1595743
[12] http://diariodonordeste.verdesmares.com.br/cadernos/negocios/po-de-carvao-segue-atingindo-familias-no-pecem-1.1502217
[13] http://g1.globo.com/ceara/noticia/2013/07/semace-suspende-licenca-de-esteira-de-termoeletrica-no-pecem-no-ceara.html
[14] http://g1.globo.com/espirito-santo/noticia/2016/01/entenda-o-que-e-o-po-preto-que-polui-o-ar-e-o-mar-de-vitoria-ha-anos.html
[15] http://g1.globo.com/distrito-federal/noticia/racionamento-atinge-nove-areas-do-df-nesta-terca-confira-a-lista.ghtml
[16] http://portal.rebia.org.br/noticias/mudancas-climaticas/8359-mudancas-climaticas-poem-em-risco-seguranca-hidrica-na-america-do-sul
[17] http://www.mct.gov.br/upd_blob/0235/235580.pdf
[18] http://www.itamaraty.gov.br/images/ed_desenvsust/BRASIL-iNDC-portugues.pdf
[19] MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 22.ed. ver, ampl. e atual. São Paulo: Malheiros, 2014.