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Os jovens e os Bolsonaro.

* Publicado originalmente no portal Brasil em 5

Desde novembro de 2013, dou aulas para adolescentes no Instituto Federal do Ceará. Primeiro, trabalhei em Crateús, no sertão cearense e região mais seca do estado, e atualmente trabalho em Caucaia, na região metropolitana de Fortaleza. Em todas as salas de aula que passei até hoje, há sempre pelo menos um ou uma jovem apoiador/a do Bolsonaro. Para aqueles e aquelas que querem transformar o Brasil numa perspectiva progressista ou de esquerda, é fundamental entender este fenômeno. Por que parte da juventude (não é a maioria, mas é uma parte considerável) enxerga em Bolsonaro e naquilo que ele representa uma alternativa política à situação que vivemos?

É possível tentar explicar o fenômeno a partir de vários ângulos. Proponho aqui dois deles, bastante conectados entre si. O primeiro parte da constatação da crise do que podemos chamar de uma “hegemonia aparente” de forças progressistas. Vivemos, nos anos de governo petista, a consolidação como discurso oficial do reconhecimento dos direitos de setores minoritários – ou, mesmo que não minoritários, mais oprimidos e explorados – da sociedade. Mesmo com muitos limites, cresceram políticas antirracistas, contra o machismo, contra a homofobia e transfobia, de reconhecimento da pluralidade cultural e identitária do país, especialmente vinculadas aos indígenas e quilombolas, e etc.

Esse cenário todo, fruto da luta de movimentos sociais, gerou alguns avanços em termos de políticas públicas e de produção de consenso na sociedade, mas não caminhou na direção de nenhuma solução estrutural para essas questões. Neste sentido, formou-se um “consenso parcial” na sociedade, no qual setores conservadores e reacionários não se sentiam a vontade de colocar explicitamente suas posições retrógradas e opressoras (embora continuassem com elas), e setores progressistas buscavam avançar cada vez mais em uma disputa discursiva em cada uma das pautas, e boa parte da sociedade – menos engajada – mudava, aos poucos, suas percepções. Com a força do Estado em mãos progressistas – mas sempre dividida com setores conservadores – e o consenso parcial, formou-se uma hegemonia aparente de um discurso de igualdade.

Por outro lado, a crise multifacetada que assola o Brasil desde 2013 colocou em xeque as bases materiais dessa hegemonia aparente: a desigualdade social que voltou a crescer nos últimos anos, a violência urbana que estourou, o desemprego que cresceu e, a partir de 2016, a intensificação da retirada de direitos e conquistas criam as bases materiais para um caldo de insatisfação generalizada e crescente. A geração que nasce no século XXI, que viveu ou vive sua adolescência nessa crise, especialmente no âmbito das classes populares, acaba se tornando “disponível” politicamente para uma direita mais conservadora e agressiva que, surfando na onda da crise, a associa àquela hegemonia parcial e constrói discursos antissistêmicos a partir dessa associação. É a geração que cresce sob governos “de esquerda” e não vê muito sentido nisso, não vê sua vida melhorar. Nesse contexto, um sentimento legítimo de revolta antissistêmica, de rebeldia – que em outros momentos da história podia se associar a uma crítica anticapitalista à esquerda, à luta democrática contra a ditadura ou à ideia da construção de outra sociedade mais justa e igualitária – passa a ser associado a uma alternativa de direita reacionária, que enxerga na conta do “politicamente correto” e dessa “hegemonia” de ideias progressistas, que na realidade nunca se consolidou, a “culpa” da crise.

O outro ângulo, muito conectado ao primeiro, é o de que “lugar” essa alternativa ocupa no espectro de possibilidades políticas aberto a essa juventude. A alternativa Bolsonaro preenche o espaço do ressentimento. É a resposta da raiva impensada, debochada, a tudo o que está estabelecido. Os setores conservadores do país mais atuantes atualmente, apesar das diferenças entre eles, conseguiram captar esse sentimento. É o processo de depósito das frustrações das próprias vidas nos que são ou pensam de forma diferente e de certa forma estão associados, mesmo que subjetivamente, às forças progressistas antes parcialmente hegemônicas – pode ser o professor de história, o ator de uma exposição com nudez, a militante feminista, etc. – que gera a base social disponível para organizações como o MBL e a família Bolsonaro. É o mesmo processo que dá vazão a propostas como o Escola Sem Partido.

Diante disso, os desafios são enormes. O primeiro, é saber diferenciar as lideranças e os setores que formulam e propagam essas ideias das pessoas que aderem a elas de forma pouco refletida. Essa meninada jovem que tem simpatia por Bolsonaro e sua trupe, em sua enorme maioria não é fascista e não é necessariamente nem reacionária. Pelo menos ainda não. São pessoas em formação, procurando alternativas para um mundo e um sistema que já não parece oferecer isso a elas. Nesse caso, precisamos apostar em muito diálogo com essas pessoas. Precisamos combater as ideias dessas lideranças com a força dos movimentos, mas também com a capacidade de produzir outras alternativas. Não é tão difícil mostrar que defender um projeto de quem agride ou ameaça mulheressistematicamente, que é racista, que defende o retorno a um regime ditatorial no qual quem pensava diferente era exterminado moral e fisicamente, que acredita que se resolve o problema da violência simplesmente armando a população não gera uma sociedade viável. O desafio de quem não quer ver crescer o ódio à diferença como motivador da participação política no Brasil é o de travar esse debate.

Para isso, precisamos de mais uma condição. Precisamos entender que a “hegemonia parcial” que os setores progressistas pareceram ter nunca foi suficiente. Apostar na produção de consenso através da despolitização da sociedade e da desmobilização dos movimentos sociais, numa sociedade de tradição conservadora como a nossa, não podia ser sustentável. É preciso fazer o caminho inverso: enfrentar o debate em todas as suas formas, em cada uma das questões específicas colocadas, mas sobretudo tendo como perspectiva a colocação de uma alternativa antissistêmica que seja radicalmente igualitária, radicalmente fraterna e solidária. Concordamos que esse sistema – político, econômico, social – está esgotado. É hora, então de uma alternativa que, principalmente, consiga apresentar como possibilidade de escolha para essa juventude indignada, no lugar do ressentimento e da raiva, a esperança e a crença no próprio protagonismo na construção de outra sociedade.

 

Rodrigo Santaella é Cientista Político, Professor do Instituto Federal do Ceará, militante do movimento sindical e integrante da Coordenação Nacional da Comuna.

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