A autonomia do Banco Central e os carnavais da burguesia

Por Mateus de Albuquerque (*)
Chega o carnaval e nem todos respeitam o isolamento. O Bloco do Mercado vai às ruas com sua folia, sustentada no mau gosto e no pouco crédito pela vida humana. Em plena pandemia, a comida na mesa do povo, na forma de auxílio emergencial, é negociada em troca de um apetitoso petisco: a autonomia do Banco Central, desejo antigo do mercado financeiro. Isso se deu pela aprovação, na Câmara dos Deputados, de um Projeto de Lei que garante várias demandar que foram agregadas em torno dessa bandeira, sendo, talvez, a maior delas, a concessão de mandato ao presidente do Banco Central. Ou seja, a presidência da República, eleita sob voto popular, terá o poder de indicação do cargo, mas sem poder retirá-lo. Além disso, o mandato não será consonante ao do Executivo, fazendo com que presidentes futuros não possam mais nomear a autoridade monetária tão logo tomem a posse. Um projeto de lei gravíssimo, anti-povo. Entretanto, é importante que não façamos a leitura de que essa autonomia vem agora somente, na forma do projeto de lei: ela é um processo, iniciado nos anos 90, de sequestro gradual da capacidade popular de gerir sua própria moeda.
Podemos começar essa história em outros carnavais, que nada tem a ver com o belo Bloco da Saudade do Recife. Era a folia de fevereiro de 1995 e Fernando Henrique Cardoso (PSDB) tinha acabado de tomar posse. O então presidente do Banco Central, Pérsio Arida, visitava seu amigo Fernão Bracher, dono do banco BBA, no interior de São Paulo. O resultado da folia foi marcante, no outro dia o BBA fez vária operações de mercado diferenciadas, como se soubesse o valor que o dólar (na época regulado pelo Banco Central) alcançaria; soubesse o valor dos títulos públicos. Arida acabou saindo do cargo pelo escândalo, mas essa situação revela uma faceta rasteira da política monetária do capitalismo: se você coloca economistas liberais no BC, muito provavelmente eles serão amigos, colegas de faculdade, dos principais banqueiros do Brasil. A captura do Estado se dá também pelas relações subjetivas. Como garantir que as informações privilegiadas não serão sopradas entre um ou doze cervejas durante uma noite de carnaval?
O substituto de Arida, Gustavo Loyola, já iniciou sua gestão com polêmica do tipo. Ele era sócio de uma consultoria (a MCM). Assim que aceitou o pedido, avisou os sócios e funcionários. Isso era umas 17h, mercado de ações e títulos do Brasil já estariam fechados. O problema, como todos os economistas devotos do “fim da história” gostavam de se orgulhar, é que o capitalismo é global. A notícia de que ia mudar o presidente do Banco Central do Brasil afeta as compras de papéis em vários lugares do mundo, em que o mercado continuava aberto. A MCM fez movimentações só com essa informação. Ou seja, só o fato de o sujeito saber que vai ser presidente do BC, já consiste em informação privilegiada. Loyola em sua gestão iniciou uma verdadeira perseguição ao pluralismo do sistema bancário, que culminou em fusões de instituições privadas (via PROER) e fechamento de instituições públicas (via PROES). Esse processo colocou Loyola em rota de colisão com diversos políticos poderosos. O Don Corleone baiano Antonio Carlos Magalhães não queria que o Econômico, instituição privada de seu estado, quebrasse. Governadores de vários estados não queriam perder seus bancos estaduais, inclusive o próprio Mário Covas, governador tucano de São Paulo, com o seu Banespa.
Essa informação é particularmente relevante porque desvela que o Plano Real, a “glória” que garantiu os oito anos da era FHC, funcionava com um partido, um projeto unificado de sociedade que se colocava contra a classe trabalhadora; mas que também enfrentava outras frações da burguesia enraizada no Estado, que seriam essenciais para a tal “governabilidade”. Esse processo inclusive se inicia com uma derrota: ainda no governo Itamar, o Partido do Real desejava extinguir o Conselho Monetário Nacional (CMN), concentrando todos os poderes no Banco Central. Itamar, frações da burguesia e o sistema político como um todo reagiram e o CMN foi mantido, em versão diminuta de uma trinca, com os ministérios da Fazenda e do Planejamento exercendo certo controle sobre o BC.
Após essa derrota, na chegada à apoteose, a Acadêmicos do Mercado passaram a preparar-se para impor todos os seus sambas enredo sobre as outras sinfonias. A chegada de Armínio Fraga ao BC em 1999 é um passo importante nesse processo. Fraga era especulador do Soros Fund (sim, do mesmo George Soros que o capitão do Planalto acusa de financiar o comunismo), focado especificamente em países emergentes como o Brasil. A situação era tragicômica. O saudoso Lauro Campos chegou a dizer: “é uma raposa cuidando do galinheiro”. A gestão de Fraga avançou em duas demandas do mercado. A primeira, logo no início de seu mandato, foi a flutuação total do real. Ou seja, o câmbio não mais seria um recurso para que o país direcionasse seu próprio desenvolvimento, regulando a balança de importações e exportações e os preços. A segunda é particularmente importante para o que estamos falando aqui: O Regime de Metas da Inflação. Com este Regime, o CMN decide, anualmente, qual vai ser a "meta da inflação". E o Banco Central tem liberdade quase que total para fazer o que quiser para perseguir essa meta. Ou seja, mais autonomia.
A eleição de um presidente operário em 2003 poderia representar uma alteração nos rumos dessa história, mas foi o contrário. O Momo que Lula “chamou” para reinar sobre a folia foi Henrique Meirelles, então presidente do Boston Bank. Ou seja, evoluímos de um especulador para um banqueiro no Banco Central. “Êba”, diriam. Além disso, um passo essencial para a conquista da autonomia foi alcançado nessa gestão. Quando Meirelles foi acusado de um esqueminha de lavagem de dinheiro em 2004, o mercado ficou em polvorosa: como perder o nosso "homem de referência" no governo? Vamos deixar esses “comunistas” ficarem sem ninguém para tutelá-los? A solução de Lula foi dar status de Ministro para o BC. Assim, ele teria foro privilegiado. Mais um passo porque agora o BC teria poderes iguais às outras pastas do CMN. Não estaria subordinado a nenhuma delas. Ou seja, o antigo plano do Partido do Real de transformar o CMN em uma instância inócua estava sendo alcançado por outras vias. Isso foi determinante para o segundo mandato de Lula: quando Palocci saiu e Guido Mantega entrou na Fazenda, nem mesmo a pressão do mesmo para baixar os juros intimidou Meirelles. Era autônomo e soberano sobre a instituição que presidia.
A revisão desse processo histórico não se dá por nostalgia. Queremos aqui reforçar que a autonomia do Banco Central não se iniciou com esse nefasto projeto de lei aprovado na Câmara semana passada, um verdadeiro xeque mate na pauta. É um processo gradual, que se dá por vitórias institucionais de uma fração burguesa incrustada nas pastas econômicas, mas também de uma batalha ideológica. Terry Eagleton, filósofo marxista inglês, apresenta a “naturalização” como a principal ferramenta da ideologia. Ela seria uma espécie de “nem precisa dizer!”, o estabelecimento do que é óbvio, do que é normal. Ao naturalizarmos que nossos presidentes do Banco Central passem informação privilegiada para banqueiro no carnaval, naturalizamos que especuladores e banqueiros ocupem esse posto. O próximo passo é naturalizar que não existe política no Banco Central, que não existe o que decidir: a política monetária se dá por regras “naturais” de mercado. Câmbio e juros não podem ser ferramentas a favor do povo, são só expressões do que há.
Contra o Acadêmicos do Mercado, precisamos de um bloco do povo. Precisamos desnaturalizar a marcha do mercado, impor a nossa própria sinfonia. Que a “política” não seja algo a ser evitado, mas algo tão essencial à festa quando confete e serpentina. Que lutemos pelo direito de decidir sobre nossos corpos, nossas vidas, nosso destino, nossa moeda. (*) Mateus de Albuquerque é jornalista, mestre em Ciências Sociais e doutorando em Ciência Política (UFPR).