O Brasil tem fome de quê?

"A fome não é resultado da falta de produção de alimentos, mas da falta de acesso a eles" (Renata Motta, Universidade Livre de Berlim).
“A fome é uma questão política” (Josué de Castro).
Escrito por Roberto Araújo (*)
Compra quem pode, come quem tem!
1. O jornal Folha de São Paulo em matéria de Thiago Amâncio, publicada no dia 20.05.21 no caderno Cotidiano, estampava em manchete: “faltou comida para um a cada quatro brasileiros nos últimos meses”. A esse dado, soma-se ainda a informação de que “a situação é mais sentida por mulheres, negros e pessoas menos escolarizadas. Faltou comida para 40% dos que têm apenas o ensino fundamental completo. A fome foi mais sentida também entre moradores da região Nordeste”. Percebe-se, assim, que a insegurança alimentar, que compreende desde a má qualidade do que se come, a inconsistência no acesso a alimentos e a fome em estado absoluto, reside entre nós e tem recortes explícitos e cruéis de gênero, raça, cor, classe e território. Esse cenário dantesco é detectável a olhos nus, nas ruas, praças e favelas das grandes cidades em particular, mas não exclusivamente. Segundo estudo da Universidade Livre de Berlim, “três em cada quatro domicílios localizados em áreas rurais (75,2%) estavam em situação de insegurança alimentar entre agosto e dezembro de 2020”. É o que nos revela a reportagem de Thais Carrança, da BBC News Brasil, publicada em 02.06.21 no portal UOL.
2. O retorno do Brasil ao mapa internacional da fome é um duro sintoma da desigualdade social em que a insegurança alimentar é um de seus traços mais profundos. Suas causas específicas relacionam-se a um conjunto de elementos: desmonte das políticas públicas de soberania e segurança alimentar, como a extinção do CONSEA (Conselho de Segurança Alimentar), desemprego crescente, que no trimestre móvel de dezembro de 2020 a fevereiro de 2021 atingiu o patamar de 14,4%, o que significa quase 15 milhões de desempregados no país, e o modelo de produção alimentar estribado na monocultura de exportação, concentração de terras, êxodo rural, devastação da natureza, no extermínio dos povos das florestas e no desperdício. Tudo isso aprofundado pela crise sanitária trazida pela pandemia da Covid-19.
3. Entretanto, a insegurança alimentar no Brasil não resulta da falta de alimentos, como se pode até pensar. Como nos diz Renata Motta, da Universidade Livre de Berlim, "a fome não é resultado da falta de produção de alimentos, mas da falta de acesso a eles". Segundo a OMC (Organização Mundial do Comércio), o Brasil é o segundo maior exportador mundial de alimentos. Entretanto, essa produção não objetiva alimentar pessoas. É um imenso negócio global cuja finalidade é gerar lucros. Enquanto falta comida para aproximadamente 25% da população, aumentou-se em mais de 50% a exportação de arroz brasileiro para a China, resultando numa alta de preços em torno 57%.
A fome de muitos alimenta os lucros de poucos!
4. Apenas dez conglomerados alimentares controlam algo em torno de 90% dos alimentos produzidos em escala mundial. De maneira geral, comemos o que é determinado pelos interesses econômicos e comerciais dessas empresas. Nossas práticas alimentares são, cada vez mais, moldadas por padrões de consumo que são alheios às culturas alimentares e aos territórios. Mesmo com variações, as dietas alimentares mundiais preponderantemente baseiam-se na ingestão de proteínas animais (gado bovino e frango) e de um restrito grupo de cereais (trigo, milho, arroz, soja, etc).
5. Seus sistemas de produção, circulação, distribuição e consumo ameaçam a estabilidade climática e a resiliência dos ecossistemas, e constituem o maior impulsionador individual da degradação ambiental e da transgressão dos limites planetários. Florestas e ecossistemas inteiros são destruídos para abrir espaço para criar gado e implantar monocultoras agrícolas. Mantidos os padrões vigentes, a catástrofe ambiental será irreversível. Fica evidente a relação direta entre a insegurança alimentar e a “nutrição” dos lucros das grandes corporações. Some-se, a isso, o alto índice de desperdício de alimentos, estimado na ordem de 30%, ocorrido na maioria das vezes em função da otimização e/ou manutenção de taxas de lucros.
6. Precisamos mudar radicalmente os padrões de consumo e produção vigentes, substituindo-os por dietas saudáveis e sistemas produtivos ecologicamente sustentáveis, que garantam a soberania e a segurança alimentar nos territórios. A comida é, pois, a mola propulsora para otimizar a saúde humana e a sustentabilidade ambiental planetária. Entretanto, vivemos um paradoxo de abundância e escassez. Produz-se alimentação suficiente para suprir as necessidades alimentares de todas e todos, porém, milhões de pessoas ainda não têm acesso a comida em quantidade suficiente e em padrões mínimos de saudabilidade.
Soberania e segurança alimentar como uma questão política
7. O combate à insegurança alimentar e a garantia do direito constitucional a alimentação (art. 6º da CF) deveriam ser compromissos e política de estado, pois a alimentação é um direito fundamental de todo ser humano. Esta garantia precisaria ser implementada através de uma política de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional executada sob os preceitos de: abrangência, intersetorialidade, equidade, participação social e articulação de medidas de caráter emergencial e estrutural. Quando planejada e aplicada de forma participativa e intersetorial, levando em consideração a diversidade e potencialidades dos territórios, a política de SSAN pode incidir positivamente nos indicadores sociais, tendo resultados para além da redução da fome, incidindo em outros setores: geração de trabalho e renda, educação, saúde, meio ambiente e nas condições e modos de viver.
8. Em um cenário de crise política e (des)governabilidade como a que vivemos, organizar a luta de combate à insegurança alimentar e pelo direito de todas e todos a comer bem, em quantidade e qualidade, comida de verdade, nutricionalmente completa, quantitativamente satisfatória, ecologicamente sustentável e culturalmente apreciável, é um desafio para toda a esquerda. A fome não espera, e os que têm fome no Brasil nesse momento não podem contar, nem aguardar soluções advindas do Estado liberal, elas só podem contar com a solidariedade ativa da classe, a exemplo do que fazem o MST, que partilhou em 2020 toneladas de alimentos e continua a partilhar, e o MTST que tem buscado a criação de cozinha sociais comunitárias, dentre várias outras iniciativas de outros movimentos e instituições. O PSOL precisa estar na linha de frente, organizando a solidariedade ativa da classe alinhada à luta para pôr um basta ao governo genocida de plantão. Solidariedade ativa aos que mais sofrem!!! A vida acima dos lucros!
(*) Roberto Araújo é professor do IFCE de Gastronomia, historiador e militante do PSOL-CE.